quinta-feira, 3 de junho de 2010

A mãe ninguém enquadra

Logo após assistir ao jogo entre Cruzeiro e Santos pus-me a refletir com certa profundidade: "nada disso faz sentido". Não havia visto ainda os jogadores do Peixe com semblante tão lúgubre. Meu coração ficou apertado. O primeiro tempo me pareceu o anúncio do que vem pela frente: a rendição. Voltaremos ao futebol pragmático e insosso que nos abarca desde a ascensão de times europeus voltados para a marcação.

Não que marcar bem seja ruim. Pelo contrário. Nossa identidade, porém, aponta como característica fundamental a improvisação. Pode soar politicamente incorreto, mas fazer apologia à improvisação nada mais é do que reconhecer quem somos nós. Improvisar significa abrir caminho para a criatividade. Exercitar o talento. Mudar o rumo das coisas desagradáveis. O jogo tá chato? É porque falta um Paulo César Caju, um Romário, um Ronaldo, um Neymar. Mas a polícia do futebol está atrás de Neymar. E quer levar todos os outros santistas no camburão da intolerância.

Os atletas dos Santos estão sendo enquadrados pelos adversários, pela arbitragem, pelos técnicos, pela cartolagem e por uma grande parcela da imprensa. Não se trata de simples aplicação de regras e conceitos. É, realmente, a olhos vistos, uma orquestração em defesa de uma doutrina. Sutil, muda, mas muito eficiente. A ordem geral parece ser: "façam esse time ser igual a qualquer outro". Não faz sentido.

Mas a vida não faz mesmo sentido e, mesmo assim, temos que tocar o barco. Tanto estoicismo se justifica a cada passo da sociedade. Se você não exercitar a serenidade, fica louco ou tão decepcionado que vira um fantasma de si mesmo. E o que me levou a incursões pelo reino da sombras foi uma contatação simples, advinda do embate no Mineirão: as pessoas são cruéis até no momento de lazer.

Pra mim, futebol é como festa de aniversário de criança. Você quer se divertir sossegadamente durante a pequena duração do evento. Comer dois pedaços de um bolo gostoso, beber guaraná sem drama e colocar em dia o papo com amigos e parentes que raramente vê.

Neymar & Cia me proporcionaram muita diversão até o dia em que foram punidos por se atrasarem para o treino por causa de uma festa de aniversário.

A partir dali começou um patrulha implacável. Principalmente em cima de Neymar. E Dorival Jr., que nunca foi um grande jogador, longe disso, também embarcou nessa. Quando Neymar declarou que daria um chapéu em Chicão, tratou de contemporizar, botar panos quentes. Pra quê? É proibido dar chapéu? Ou demonstrar confiança? Ou simplesmente declarar aquilo que quer fazer?

Essa diplomacia repentina de Dorival Jr. me incomoda. Neymar falou pelos cotovelos? Agora aguente a tiração de sarro. E pague o jantar apostado com Dentinho.

Os jogadores entram num acordo. A beligerância de uma partida - que existe somente no terreno subjetivo - costuma acabar ao apito do juiz após 90 minutos. Mas muitos torcedores seguem alimentando o ódio mesmo depois que os jogadores se abraçaram, trocaram camisas e foram juntos para a balada.

Fazia tempo que eu não via tanta hostilidade contra um jogador de futebol. Neymar, de repente, virou o bode expiatório dos frustrados, dos mal-amados, dos infelizes, dos pobres de espírito, dos pessimistas, dos ressentidos.

"É um moleque". "Precisa amadurecer". "Falou demais". "O peixe morre pela boca". "Alguém precisa dar uma prensa nesse moleque". "Futebol é pra homem". "Vamos separar as crianças dos adultos".

Tudo isso não passaria apenas de clichês do universo futebolístico se não viesse impregnado de uma má-vontade que dia a dia tem contaminado jogadores, técnicos, cartolas, jornalistas, árbitros e até gente aparentemente tranquila que gosta de tomar um chope ao cair da tarde.

O resumo da ópera é que Neymar tem que ir para a fogueira para virar aquilo que querem que ele seja: mais um.

Mais um ser humano enquadrado pela moral burguesa, cujo código de conduta espalha o odor acre de uma cordialidade de fachada. Os limites são impostos por aqueles que têm o poder de decidir o que é bom para a sociedade: os mais experientes. Os vividos. Os controlados. Os fortes. Os sérios.

O resto é feito de moleques. E eles devem rir durante um período determinado do dia. Precisam aprender a falar somente aquilo que é facilmente digerível. É inadmissível que se faça brincadeira com a honra, com a dignidade, com o bom nome de quem quer que seja. Do contrário, além da tiração de sarro, haverá um ódio emperdenido. Tão incendiário e dotado de capacidade de arregimentar multidões que será impossível para o autor das brincadeiras sair de casa, o que dirá pisar novamente o gramado.

Tudo isso, infelizmente, é reflexo do que aceitamos como correto para a nossa vida. As relações cotidianas só exibem esta diplomacia farsesca para evitar que as pessoas se agridam ou se matem. As pessoas não assimiliam a tiração de sarro, as provocações futebolísticas e a zoeira apenas como elementos de diversão. Elas guardam rancor, alimentam ressentimento. Não vêem a hora da vingança. E quando o autor de dribles desconcertantes, de frases provocativas e de brincadeiras fora de hora se dá mal, elas não devolvem na mesma moeda. As pessoas, mesmo aquelas que não assistem aos jogos com regularidade, vão à forra com toda a raiva acumulada por inúmeras situações - objetivas e subjetivas.

Muitos torcedores, tenho certeza, se pudessem entrar em campo com um pedaço de pau e lascar na cabeça de Neymar o fariam sem maiores arrependimentos.

Pra eles não importa se o rapaz sacudiu o marasmo no futebol. Não importa que ele resgatou a picardia dos dribles.

O importante é ofendê-lo. Rotulá-lo. Quebrá-lo ao meio. Se possível, impedir que ele jogue futebol.

Neymar virou uma espécie de demônio a ser exorcizado dos gramados. Quem diria! Um jovem que ganha seu dinheiro honestamente, com o talento que Deus lhe deu.

Os gracejos de Neymar nunca são esquecidos. Mas as ofensas do zagueiro Danilo, do Palmeiras, são coisa do passado. Basta pedir desculpas (que não foram aceitas, compreensivelmente, pelo jogador do Atlético Paranaense). Ninguém perde tempo refletindo sobre uma situação que expõe o que há de pior na sociedade brasileira: o preconceito. É preferível execrar Neymar, aquele filé de borboleta safado que acha que pode fazer tudo dentro de campo. Aquele sem-vergonha que pensa que é Pelé. Aquele metido, marrento, moleque que humilha os jogadores sérios.

Sabem por que motivo Dunga não convocou Neymar? Porque o sabujo da CBF é refratário à evolução, ao questionamento. Dunga prefere a segurança da mediocridade aos riscos das descobertas.

Desde de 1990 ele carrega consigo um terrível ressentimento por ter sido considerado símbolo de uma geração fracassada. Lazaroni foi esquecido, Dunga não. E não conseguiu se livrar dessa mágoa, que o faz desafiar, como um menino turrão, imprensa e torcedor.

A imprensa estrangeira, com propriedade, retratou bem o que foi o amistoso contra o Zimbábue: um jogo sem-graça. A brasileira passou o verniz do ufanismo até nas grosserias do volante Felipe Melo.

Essa situação reflete bem o estado de espírito do atual momento do futebol brasileiro: muita gente prefere jogos de caráter belicista do que integrador. Aonde nos levará esse clima de guerra estimulado pelo próprio técnico da Seleção Brasileira? As mortes causadas por choques entre torcidas organizadas nos dão uma pista.

Vencer a qualquer custo às vezes implica menos mérito do que se imagina.