Cristiano Kock Vitta
Jornalista
Especial para o Jornal de Limeira
cristianokock@uol.com.br
A praga do autoelogio gerencial está solta. Tiraram-na das
catacumbas da tecnocracia, que nem é tão especializada assim quando está
relacionada à administração pública. A época é propícia para jactâncias
políticas. Em Limeira, mais ainda. Aos “presentes populares” (consultas
médicas, dentaduras, camisetas, sapatos, boca-livre), direcionados por fins
eleitoreiros, soma-se a diversão das festividades de aniversário. Prato cheio
para discursos de cooptação. Mas o clima também favorece a autocrítica. Quer
situação mais ideal para lavar a roupa suja do que uma festa em família? Embora
passível de constrangimento, o esforço para botar tudo em pratos limpos pode
ter efeitos muito profiláticos. Mesmo que se restrinja a questões de foro
íntimo.
As ponderações são sempre necessárias. Do contrário,
estaremos limitando o alcance das idéias verdadeiramente originais. Sem
reflexão, tem primazia o juízo puramente bajulatório. A originalidade está
ligada à independência, que é o caminho lícito para se viver com dignidade.
Para se viver com dignidade, temos que exercer nosso direito
de dar pitaco em tudo. Principalmente nas administrações públicas. Se um
governo é refratário a ponderações, ele é burro. Priva-se do benefício da
autocrítica. Desprezando a possibilidade de analisar criticamente seus atos,
descamba para o autoelogio. O autoelogio é uma forma de proteção. Tem suas
raízes no medo da verdade. Todo governante que acredita ser infalível tende a
intimidar seus críticos. Às vezes, eles nem são adversários. Apenas chamam a
atenção para possíveis falhas. Um governo sem autocrítica está fadado a ter
apenas bajuladores à sua volta. E aí, infelizmente, é meio caminho andado para
se tornar despótico.
Se não nos sentirmos suficientemente alicerçados para
exercer a plenitude da opinião, então a liberdade virou privilégio de apenas
alguns grupos. O que é enganoso, porque liberdade não se estabelece a partir do
pensamento de grupos ou de confrarias. Como escreveu Cecília Meireles no
Romanceiro da Inconfidência: "Liberdade, essa palavra que o sonho humano
alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda".
Portanto, temos que preservar a liberdade de ser
inconvenientes quando necessário for. Se o rótulo for inevitável, não nos
acabrunhemos. A vida é muito maior do que o julgamento que fazem de nós.
Quando tudo parece encaixado é que precisamos aparar
arestas. Relações entre governo e governados não são uma ciência exata. Nos
bastidores do poder coadunam interesses de várias categorias. A complexidade
destas relações exige permanente estado de vigília. Principalmente da imprensa.
É inegável que o governo Félix fez grandes conquistas. Mas
nesta festa de aniversário, quando o prefeito estiver mais relaxado, ele deve
fazer um exame de consciência. E conclamar seus súditos para, juntos, exercer
seu direito inalienável à autocrítica. Deixar de lado os panegíricos que
costumam rodear-lhe os passos e atentar, ao menos por alguns momentos, o que o
incomoda no seu íntimo. Este é o primeiro passo para admitir, humildemente, que
não existe infalibilidade.
E que a população, mesmo num clima tão festivo e agradável,
junte-se aos gerentes da cidade para fazer uma reflexão profunda sobre a atual
conjuntura. Não estamos no paraíso. Há muito por fazer, principalmente na
periferia de Limeira. Para nos impregnarmos deste amor profícuo uns pelos
outros, exerçamos a autocrítica. Comamos o pão e brinquemos no circo, mas não
nos esqueçamos da autocrítica. Para que nos sejam abertas sempre perspectivas
positivas.
Assim agiu Santo Agostinho quando se converteu e se tornou
referência atemporal de equilíbrio e virtude. Aproveito, inclusive, para
sugerir aos leitores a aquisição de “Confissões”, presente na coleção que a
Folha de S. Paulo lança a partir do próximo domingo. Disse Santo Agostinho:
“Quero recordar as minhas torpezas passadas e as depravações
carnais da minha alma, não porque as ame, mas para vos amar, ó Deus. É por amor
do Vosso amor que, amargamente, chamo à memória os caminhos viciosos para que
me dulcifiqueis, ó Doçura que não engana, doçura feliz e firme. Concentro-me,
livre da dispersão em que me dissipei e me reduzi ao nada, afastando-me de
Vossa unidade para inúmeras bagatelas”.
E que, neste aniversário de Limeira, possamos ter amor
próprio suficiente para nos deleitarmos com os bens que são oferecidos e para
rechaçarmos aquilo que impede o compartilhamento e a justiça social.